Algo que percebi logo nos primeiros dias aqui em Edimburgo foi a presença de muitas aves na cidade, incluindo corvos. No bairro onde moro, é comum ver esses pássaros pretos voando ou caminhando pelo gramado em busca de comida.
O que você lembra quando pensa ou vê um corvo?
Uma das primeiras ideias que me ocorrem ao pensar em corvos é o poema “O Corvo” (“The Raven”), de Edgar Allan Poe. Publicado em 1845, o texto conta a história de um homem que lamenta a perda de sua amada. Em uma noite fria de dezembro, enquanto o protagonista está em seu quarto lendo, ele é interrompido por uma batida na porta. Ao abrir, porém, ele não encontra ninguém, apenas a noite. Ele volta a ler, mas novamente ouve batidas, desta vez na janela. Ao abri-la, um corvo entra em seu quarto. O homem começa a conversar com o corvo, que na verdade sabe dizer apenas uma palavra: “nunca mais” (nevermore). Por mais que o homem pergunte de onde veio o corvo, qual sua intenção e, posteriormente, se ele um dia terá a chance de se reunir novamente com sua amada, a resposta do corvo é sempre a mesma: nunca mais.
É um poema melancólico, um tanto sombrio, que contém alguns dos temas recorrentes da obra de Poe: a morte, o sobrenatural e uma sensação de desespero. Desde o início, o homem percebe que o pássaro só sabe repetir a mesma palavra, mas ainda assim ele insiste em perguntas que, ao serem respondidas com um “nunca mais”, apenas aumentam sua dor e angústia.
É curioso como a nossa mente trabalha, criando livres associações entre símbolos e coisas que imediatamente nos remetem a uma ideia ou sentimento. Alguns anos atrás, o diretor de cinema brasileiro Fernando Meirelles participou de uma mesa redonda com outros diretores nos Estados Unidos. Em determinado momento, perguntaram se ele nunca pensou em se mudar para os Estados Unidos, e ele respondeu que não, que tem vínculos fortes no Brasil e que gosta de dirigir em português. Por mais que ele saiba falar inglês, ele explica que não é a mesma coisa que em português. Para exemplificar, ele cita que, em inglês, quando você fala a respeito de uma mangueira, a árvore que dá mangas, você usa a palavra “mango tree”, que nesse caso é apenas uma árvore. Mas quando ele ouve a palavra “mangueira” em português, referindo-se exatamente à mesma coisa, ele lembra da mãe. Os convidados começam a rir, e ele não consegue terminar o raciocínio, mas fica claro que existe uma conexão muito forte e afetiva entre a palavra, a imagem de uma mangueira, e a mãe dele, provavelmente remetendo à sua infância.
(A pergunta ocorre no final do vídeo, a partir de 3:48).
Todo mundo tem isso. Talvez não com mangueiras especificamente, mas com outros objetos, animais, cheiros, imagens, gostos… O que acho ainda mais interessante é como essas associações podem, por vezes, ser múltiplas e conduzir a ideias e sentimentos totalmente díspares. Assim como corvos me lembram Poe, a morte e aquilo que nunca mais poderá ser experimentado ou repetido, eles também me remetem a uma outra história muito diferente, mas que encontra raízes profundas na minha infância e que sempre me vem à mente quando os vejo por aí.
Trata-se da história de Elias, narrada no livro de I Reis, capítulo 17. Elias foi um dos grandes profetas da época monárquica de Israel. No seu tempo, Israel já estava dividido em reino do norte e reino do sul, e ele atuou ao norte, durante o reinado de Acabe, que entrou para a história como um dos piores reis de Israel. Durante o seu governo, Acabe promoveu o culto aos deuses Baal e Aserá e casou-se com Jezabel, uma princesa fenícia devota a Baal. Juntos, rei e rainha, perseguiram os profetas do Deus de Israel (Yahweh) e levaram a nação à apostasia. O Antigo Testamento registra:
“Acabe fez também um poste da deusa Aserá, de maneira que cometeu mais abominações para irritar o Senhor, Deus de Israel, do que todos os reis de Israel que vieram antes dele.” - I Reis 16:33.
Nesse contexto de perseguição religiosa e declínio moral da nação, surge Elias, que durante toda a sua vida será uma pedra no sapato de Acabe, acusando e apontando abertamente os erros do rei. Como mensageiro de Deus, ele traz também condenação a Israel. Sua primeira aparição no texto é no capítulo 17, quando ele se apresenta diante do rei e profetiza uma grande seca em todo o território nacional. Nem chuva nem mesmo orvalho cairão sobre a terra enquanto ele não disser o contrário.
A partir daquele momento, Israel passa a enfrentar um período de muita dificuldade por conta do julgamento divino. Elias rapidamente se torna o homem mais procurado do império, e a fim de preservar a vida do seu enviado, Deus ordena que Elias se esconda:
“Saia daqui, vá para o leste e esconda-se junto ao ribeiro de Querite, nas imediações do Jordão. Você beberá a água do ribeiro, e eu ordenei aos corvos que sustentem você naquele lugar.” - I Reis 17:3-4.
Elias obedeceu a Deus e se escondeu no lugar que foi dito. O texto diz que ele passou a morar perto do rio Jordão e que, durante a manhã e à noite, os corvos lhe traziam pão e carne para comer. Ele viveu nessa região por muito tempo, até que o riacho onde ele bebia água secou e ele teve que se deslocar para outro lugar.
Esse episódio dos corvos alimentando Elias é bem conhecido entre crianças nas igrejas. Desde cedo, ouvimos essa história, que une elementos fantásticos suficientes para prender a atenção e que geralmente é concluída com uma exaltação da coragem de Elias e da provisão divina.
Nestes últimos dias, ao relembrar dessa história à vista dos corvos do bairro e revisitá-la, descobri que no hebraico a palavra para corvo é עֹרֵב (oreb), e o termo aparece duas vezes no trecho de I Reis 17. Essa, porém, não é a primeira vez que corvos são mencionados no Antigo Testamento. Em Levítico e Deuteronômio é possível encontrar a mesma palavra, mas neste caso, ela é usada para exemplificar aves que o povo de Israel deveria considerar impuras e não consumir. Esse é um detalhe interessante, pois revela que o cuidado divino não apenas se deu de modo pouco convencional — aves trazendo comida para o profeta — mas também por meio de um instrumento totalmente inusitado, que são os corvos, animais impuros para os israelitas e que costumam se alimentar da carne de outros animais mortos.
Provisão, cuidado, soberania divina sobre a criação, fé e obediência por parte de Elias… todos esses são elementos presentes nessa história e que, de alguma maneira, se encapsulam na minha mente na figura do corvo, que aparece na narrativa como esse personagem inesperado por meio do qual a vida do profeta é sustentada.
Diante dos desafios pela frente, fico feliz de ter corvos como vizinhos. Ainda que as ideias suscitadas por eles sejam de naturezas totalmente diferentes quando lembro de Poe e/ou Elias, eu creio que pelos próximos meses, imagens de cuidado e provisão, por mais inusitadas que sejam, virão bem a calhar.